domingo, 23 de agosto de 2015

A luta por cotas na Unesp


Os recentes casos de pichações racistas em Bauru, com os escritos “negras fedem”, “Juarez macaco” entre outros, recentemente chocaram a UNESP e a sociedade, por demonstrar que o racismo é algo que existe, é cotidiano e não acontece somente nos Estados Unidos e África do Sul. Cabe lembrar que isto não é um caso novo, só para citar exemplos em 2012 houve a pichação “Sem cotas para os animais da África” no campus de Araraquara e também “Thaís negra macaca fedida”, contra militante negra do campus de Presidente Prudente.

Fica evidente que isto é uma resposta ao aumento da população negra dentro das universidades, advindas do programa de cotas adotado na UNESP a partir de 2013. O que não é dito é o motivo pela qual essa é a única das três universidades paulistas que adotou o programa. Geralmente se diz “A UNESP adotou a política de cotas”. Isto soa quase como uma benevolência da instituição, que gentilmente cedeu este avanço.

Neste texto queremos resgatar a história da luta pelas cotas na UNESP no ano de 2013, para demonstrar que foi a muito custo que foi arrancada essa conquista e que ali e muito antes, já se demonstrava o racismo que permeava a recusa deste programa, seja por parte da comunidade acadêmica ou da administração dessa universidade.

Lutas por cotas

A luta por cotas raciais e sociais nas universidades data dos anos 90, com o ascenso dos movimentos negros no Brasil colocando a pauta racial e a necessidade de políticas de ação afirmativa (reparação histórica) da condição social do negro em nossa sociedade. Com muita luta a UNB foi a primeira universidade do Brasil a ter uma política de cotas raciais a partir do ano de 2004, porém foi só no ano de 2012 que foi aprovada a lei de cotas raciais e sociais para as universidades federais brasileiras e reafirmada pelo STF. Mesmo após a lei, muita resistência foi encontrada na sua implantação.

Foi dentro deste contexto que começou a ganhar força a pauta de cotas raciais e sociais nas universidades estaduais paulistas. Por exemplo, em novembro de 2012, militantes negros ocuparam a reitoria da UNESP num ato de protesto para a implantação da política de cotas na universidade [1].

O golpe do PIMESP

Sob a pressão das lutas por cotas, o governo do estado de São Paulo, na figura do governador Geraldo Alckmin (PSDB), propôs o Programa de Inclusão por Mérito do Estado de São Paulo (PIMESP). Este foi o maior golpe às lutas do movimento negro pelas cotas. Explicaremos por quê.

Tal programa, escrito por Carlos Vogt então diretor da UNIVESP (Universidade Virtual do Estado de São Paulo), propunha que o estudante que ingressasse por meio de cotas na UNESP iria cursar dois anos de um “curso preparatório”, para, após isto, se aprovado com nota sete, o estudante pudesse enfim adentrar em algum curso de graduação de alguma das três estaduais paulistas ou da FATEC. O projeto era inspirado nos colleges estadunidenses.

O dito “curso preparatório” consistia em um curso semipresencial que possuía em seu projeto disciplinas como “Gestão de Tempo”, “Matemática Financeira”, “Liderança e Trabalho de Equipe”, entre outros. Junto a isto, após terminar o curso de dois anos, o estudante receberia um diploma de ensino superior. As problemáticas de tal proposta eram enormes. Em primeiro lugar, esse curso preparatório consistia numa grade curricular que pouco e nada tinha relação com o curso para o qual o candidato pretendia se matricular. Apenas era um curso de caráter profissionalizante obrigatório. Fica nas entrelinhas a intenção de desviar o aluno do seu projeto inicial de formação acadêmica para tentá-lo a se transformar em força de trabalho com qualificação técnica para o mercado. Os argumentos esgrimidos sobre a necessidade de “nivelar” a formação com que os cotistas chegariam à universidade e reparar um possível ensino defasado do estudante não guardavam correspondência com a grade curricular.

Sob as mais diversas condições, tal projeto além de aumentar os anos necessários de formação destes estudantes, demonstrava ser mais um projeto de precarização do ensino e exclusão do ensino superior da população negra e pobre de nosso país. Para uma população já subalternizada de todas as oportunidades e condições sociais o governo do estado de São Paulo e os gestores das universidades estaduais colocavam uma exigência de “Mérito”. (Como se os cotistas merecessem menos que os que tiveram oportunidades durante sua formação fundamental e média.). A intenção era a de não romper o elitismo das universidades públicas, pagas à custa dos trabalhadores deste país, formar uma mão-de-obra barata, aumentar o tempo de formação do estudante cotista, assim criar barreiras que inviabilizariam uma política de cotas efetiva. Os reitores das universidades paulistas já demonstravam seu apoio ao projeto [2].

Os movimentos negros e estudantis imediatamente começaram a denunciar o golpe gestado pelo governo, iniciando um período de lutas em diversos âmbitos. Porém, em pouco tempo a UNESP se mostrou o polo desta luta e a única que conseguiu levar tal mobilização para a vitória.

Luta na UNESP em 2013.

A luta na UNESP adquiriu outros contornos com o seu desenvolver. Sendo ela a menos elitizada das três estaduais paulistas [3] e também com menos condições de permanência estudantil [4], estouram as lutas na UNESP com a greve das unidades de Ourinhos, Assis e Marília.

Ressaltamos um ponto importante, Ourinhos, a primeira unidade a declarar greve estudantil naquele momento, é uma unidade do projeto da UNESP chamado de “Unidades Experimentais”. Este projeto prevê que a UNESP seja responsável pelo custeio do corpo docente, enquanto os municípios seriam responsáveis por todo o restante. O resultado é desastroso: surgem universidades sem quaisquer condições de exercer as atividades, não possuindo espaço próprio, bibliotecas, restaurantes universitários e outros. Um claro projeto de universidade que só aceita aqueles que têm condições de, além de passar pelo filtro do vestibular, poder pagar para estudar em outra cidade.

Deste modo, com quatro eixos de pautas se inicia uma das maiores greves da UNESP, tendo no setor dos estudantes a ponta de lança de um movimento estadual, sendo elas: -Cotas Sim! Pimesp Não!; -Permanência Estudantil; -Democracia na Universidade; -Não à repressão aos movimentos sociais. Em pouco tempo a greve conseguiu agregar o setor dos servidores não docentes e servidores docentes, exigindo equiparação salarial e em total apoio e luta pelas pautas do movimento estudantil.

Em seu ápice, o movimento atingiu 12 unidades com greve estudantil, 11 unidades com greve de servidores técnico-administrativos e seis unidades com greve de servidores docentes. Manifestações massificadas, com cortes de rodovia, aulas públicas, entre outras iniciativas, colocaram em questão o fato da UNESP ser uma universidade branca e elitista. Muitos estudantes, até então fora das lutas, acabaram por realizar suas primeiras experiências e transformaram sua concepção de mundo nesta mobilização.

Em julho do mesmo ano o movimento estudantil, perante a intransigência da reitoria em negociar suas pautas, ocupou o prédio da reitoria da UNESP em São Paulo. Desta ocupação o movimento saiu com uma pauta de negociação em que garantia a implantação da política de cotas, bem como outras pautas como bolsas-auxílio e a criação de uma Comissão Permanente de Permanência Estudantil (CPPE), composta por estudantes, servidores docentes e técnico-administrativos de maneira paritária.

Em total foram mais de três meses em greve, e ocupações de direções, de campi universitários em diversas unidades do interior de São Paulo e, em agosto, a reunião do Conselho Universitário da UNESP veio a ratificar a implantação das cotas na universidade. Tal implantação se deu não pelo projeto defendido pelo movimento estudantil, que queria garantir maior proporção para as cotas raciais, aderindo à proposta da Frente Pró-Cotas do Estado de São Paulo [5], porém, ainda assim o resultado caracterizou um avanço que enfrentava forte resistência da instituição.

O mito do “racismo cordial” universitário

As atuais ações racistas perpetradas na universidade estão longe de serem casos isolados ou ações pontuais. Vivemos em uma universidade extremamente racista, que exclui e subalterniza a população negra. Tal relação é um projeto intrínseco à própria UNESP, não é pouco lembrar que nosso patrono, Júlio de Mesquita Filho, advindo da família dos criadores do jornal O Estado de São Paulo, fala em um de seus discursos:

"Nós temos que cuidar muito do organismo político brasileiro, e não podemos dar direito de voto a determinadas regiões, porque o organismo brasileiro é meio teratológico, cresceu de um lado e não se desenvolveu de outro [...] Ocorreu na sociedade brasileira um problema seríssimo, foi incorporada à cidadania a massa impura e formidável de dois milhões de negros, que fizeram baixar o nível da nacionalidade, na mesma proporção da mescla operada" [6].
Como um “problema de origem”, as universidades públicas brasileiras tiveram forte papel na subalternização de populações e na perpetuação do racismo em nossa sociedade. De alguma maneira, a universidade leva a matriz de pensamento marcado por intelectuais como Raymundo Nina Rodrigues, um dos que constituiu o racismo científico à brasileira.

Um Balanço do Movimento

O movimento desencadeado na UNESP foi um importante avanço na pauta das classes trabalhadores e negras do Brasil. Porém, é preciso fazer um balanço para as lutas que virão. Esta foi a primeira experiência da grande maioria dos que se dispuseram a levar tal mobilização adiante. Os debates eram ainda escassos e a falta de experiência fez com que nos precipitássemos em alguns momentos. 

No movimento, a atuação de militantes negros, mesmo que poucos, dada a constituição da universidade pública naquele momento, bem como o contato com movimentos fora da universidade – por exemplo, a Frente Pró-Cotas do estado de São Paulo - foram fundamentais para pautar a particularidade da demanda étnico-racial e orientar a mobilização. Contudo, foi a ação unificada que conseguiu fazer uma forte crítica ao elitismo e ao racismo universitário e desencadear tal luta.

A estratégia da Frente Pró-cotas, contudo, consistia em um projeto de lei de iniciativa popular a ser apresentado na ALESP, com coleta de assinaturas. O movimento estudantil aderiu a tal campanha e coletou assinaturas, porém a luta institucional já se mostrava infértil. O projeto de lei não avançou e o legislativo não demonstrou qualquer empatia para com a proposta.

Hoje a UNESP, devido a suas greves, ocupações, mobilização, é a única com cotas raciais e sociais, sendo que a USP oferece migalhas de vagas para serem disputadas no ENEM e ainda a UNICAMP está na luta por implantar cotas em sua universidade.

Apesar da importante conquista, o movimento ficou com uma ponta sem nó. Já sabíamos que as cotas não poderiam se concretizar caso não se ampliassem as políticas de permanência estudantil, já escassas naquele momento. Dito e feito, no ano de 2014 diversos estudantes foram expulsos das moradias estudantis e seu acesso foi cada vez mais restrito. A proporção de negros na universidade é visivelmente maior, porém muitos chegam na universidade e retornam para suas cidades no instante seguinte, sem condições de permanecer, e muitos que dependiam destas políticas anteriormente estão perdendo seu acesso. Sem políticas de permanência, as cotas não garantem o acesso real dos cotistas à universidade.

O movimento também não foi capaz de avançar deste primeiro estágio de articulação “espontânea” para um movimento organizado. No ano de 2014 foram cometidos muitos erros e a mobilização foi derrotada para os estudantes. A ação organizada é uma necessidade que poucos questionam, enquanto anteriormente o autonomismo – ou o movimento que girava em torno de si mesmo – era ovacionado. 

Mostra-se, de fato, que a luta por superar contradições de classe e étnico-raciais são inseparáveis e que somente a união dos subalternizados através da luta massificada podem arrancar as demandas para a população negra, pobre, trabalhadora, das mulheres e LGBT+’s.

Para além disto, o movimento estudantil deve se entender no contexto geral da luta dos subalternos de nosso país e abandonar, de uma vez por todas, seu clássico corporativismo. O caráter branco e elitista da universidade volta a se colocar com os cortes gerais na educação, de restrição no uso das creches, de projetos de extensão, desmonte dos cursinhos universitários, e precisamos, com uma luta orgânica e organizada, enfrentar estes ataques.

A conquista das cotas já demonstra seus efeitos, porém precisamos avançar na luta por criar condições para que esta política seja efetiva. Precisamos nos debruçar sobre experiências como esta de 2013 e construir uma nova mobilização.

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[1] - http://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,militantes-do-movimento-negro-ocupam-reitoria-da-unesp,959812
[2] – Debate entre reitores da USP, UNESP e UNICAMP sobre o PIMESP: https://www.youtube.com/watch?v=UOtWtT6TbUg
[3] – só como parâmetro, a matrícula para o vestibular de 2012: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,unesp-e-unicamp-incluem-mais-rede-publica-que-usp-imp-,862307
[4] – Chamamos de permanência estudantil as políticas voltadas para a permanência de estudantes socioeconomicamente carentes na universidade como moradias estudantis, restaurantes universidades, bolsas-auxílio, entre outros.
[5] – http://frenteprocotasraciaissp.blogspot.com.br/2013/07/coleta-de-assinaturas-projeto-de-cotas.html
[6] – fonte: http://www.brasildefato.com.br/node/12887

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