sábado, 12 de setembro de 2015

O "golpe" já aconteceu

A onda de desemprego prepara a blindagem dos empresários para se acolher mais à frente no novo marco de legislação trabalhista. As chacinas contra a juventude da periferia e os indígenas adiantam-se a outro marco legal que busca manter na linha a “população excedente” da cidade e retroceder na política de demarcação das terras indígenas, que já se anuncia na “Agenda Brasil”. Também aponta para esse novo marco legal a redução da idade de responsabilidade penal. 

____________________________________________________________________



Quando falamos em “golpe”, “golpe de Estado”, temos em mente: 1- a instauração de ditaduras militares, 2 - recesso do congresso, 3 - fim das eleições diretas, 4 - perda de direitos trabalhistas, 5 – crise econômica e 6 - muita repressão pelos militares. Atualmente os três primeiros exemplos acima citados são, inclusive, desnecessários para os três últimos. Aqueles que alardeiam quanto a um “golpe” não veem que já estamos sofrendo um duro golpe escondido sob a defesa da “democracia” para poucos. Ao fim do texto apresentamos um quadro que caracteriza o golpe do qual falamos.

Nos noticiários vemos inúmeros alardes sobre a crise que paira sobre o país: altos preços dos alimentos, demissões em massa, falências de empresas, entre outros. Isto é, vivemos a pior crise econômica dos últimos 20 anos. Os ataques não se apresentam apenas no nível econômico, mas na violência policial, como na chacina de Osasco (SP) e o acirramento dos ataques dos fazendeiros contra os indígena no Mato Grosso do Sul (MS). Todo esse quadro afeta o cotidiano da população. Porém, qual é o pano de fundo desse cenário?

Um momento de crise significa, em suma, que a possibilidade de manter os lucros dos capitalistas está se esgotando ou se estreitando. Nos noticiários não é raro vermos as “taxas de crescimento da economia” e “aumento do PIB” como índices que, sem muita explicação, caso diminuam de um ano para o outro, já tornam o quadro da economia alarmante e justificam a piora da condição de vida dos trabalhadores.

Neste momento os investidores estão repensando como e onde irão investir seu dinheiro tendo o maior retorno possível em lucro. Isto significa que também precisam excluir competidores, diminuindo o número dos ganhadores e redistribuindo entre esses poucos o poder de decisão. Exemplo disto é que os grupos antes beneficiados, no período 2002-2010, estão perdendo espaço de subsídios e investimentos, como a indústria de transformação e as construtoras, porém, setores como o agronegócio continuam beneficiados [1]. A isto chamamos de realinhamento na esfera econômica.

Consequência disto é que os governos dos países são pressionados a reduzir os “custos” para aumentar os lucros. Com “custos” queremos dizer o montante destinado aos salários (remuneração da força de trabalho) e os recursos gastos pelo Estado em políticas sociais como saúde, educação, redistribuição de renda, direitos trabalhistas, previdência etc. Isto, que consiste no aumento da exploração da força de trabalho, é necessário para atrair investimentos e aumentar a competitividade nacional, diminuindo o chamado “custo Brasil”.

Vivemos o fim de um ciclo de expansão econômica, ou seja, de “crescimento”, e entramos num período de reconcentração que exige um novo marco político e legal que crie as condições necessárias para uma transição segura. Esse realinhamento na esfera econômica requer, em países de capitalismo dependente e subordinado, como o Brasil, definir, na esfera política, os operadores desta transição.

No atual cenário político, o “Fla x Flu” entre PT e PSDB que assistimos durante a campanha eleitoral de 2014 e continuou até pouco tempo atrás, com as ameaças de impeachment, que tinha como argumento central a desaprovação das contas da presidenta Dilma Rousseff pelo Tribunal de Contas da União (TCU), foi a exacerbação de uma disputa para ver quem apresenta melhores condições de operar essa transição que já foi desenhada na esfera econômica.

O caso da “Agenda Brasil” (ver quadro abaixo) é elucidativo. A ameaça de impeachment alardeado pela direita e até mesmo por partidos da base do governo Dilma, como o PMDB, foi um instrumento importante para os projetos que preveem uma grande retirada de direitos sociais. Graças a tais ameaças, o atual ministro da fazenda, Joaquim Levy, representante do capital bancário, promoveu uma tensa unidade entre a federação dos bancos (FEBRABAN) com a federação da indústria (FIESP), nesta proposta feita por Renan Calheiros, presidente do Senado e membro do PMDB [2]. Esse chamado “acordão” tende a colocar a esfera política em sintonia com a dinâmica dos interesses e necessidades econômicos. Após isto, toda a base do congresso que estava em prol do impeachment recuou e até mesmo as organizações Globo deram um golpe de timão mudando seu editorial de apoio ao golpe para um chamado à “governabilidade”.

Em nome dessa mesma “governabilidade”, a presidenta Dilma e o Partido dos Trabalhadores (PT) fazem coro a necessidade de encampar estes retrocessos. Cabe perceber que o impeachment era uma saída desgastante, arriscada e desnecessária para reenquadrar as políticas públicas nas necessidades de rápida concentração que o capital tem. Mas, a campanha que girou em torno do impeachment serviu para desviar as atenções e acelerar a imposição do novo marco legal e de políticas públicas. A urgência responde à intenção de evitar resistências e disciplinar as classes trabalhadoras: para elas, tratamento de choque.

A “Operação Lava-Jato”, que serviu para desgastar o governo federal ante o grande público, vem servindo, inadvertidamente, para transferir parte substancial das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e do Programa de Investimento em Logística (PIL) para novos investidores nacionais e internacionais. Uma das consequências deste novo realinhamento, como vimos com a viagem de Dilma e Levy para os EUA no primeiro semestre [3], foi abandonar boa parte das relações comerciais com países da América Latina e se articular com os interesses do bloco estadunidense, exemplo nítido disto é que a própria “Agenda Brasil” prevê a desarticulação do Mercosul.

Os cortes na educação com o chamado “ajuste fiscal” intensificam o quadro. Com os cortes de verbas, o já falido sistema básico chega ao limite, projetos de melhoria da educação começam a retroceder, com o fechamento de salas e a falta de professores. Também se colocam nesse bojo o corte de verbas para a construção de creches, uma das evidencias de que o maior peso desta crise irá cair sobre as mulheres.

Também a SEPPIR (Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial), a SPM (Secretaria de Política para as Mulheres) e a SPJ (Secretaria de Políticas para a Juventude) estão ameaçadas de acabar [4].

Do lado de baixo do tabuleiro, as classes despossuídas, que têm tudo a perder com essas medidas, precisam ser controladas para a garantia do sucesso do projeto. Os projetos da lei de antiterrorismo, redução da maioridade penal (ver quadro), bem como o fortalecimento das forças armadas nacionais são os dispositivos de controle desta articulação. As recentes chacinas de Osasco e os ataques dos ruralistas contra os indígenas no Mato Grosso do Sul antecipam a tragédia social que se vislumbra para o Brasil.

A reestruturação da classe trabalhadora aumentou a fragmentação entre os setores, pela via da terceirização, agora regulamentada e intensificada pelo projeto de lei 4330 (ver quadro), da dispersão geográfica da produção e da constituição de uma camada de trabalhadores especializados de “alto padrão”.

Nos embates internos do PT, originalmente instrumento de organização da classe trabalhadora e representante do ciclo de lutas dos anos 80, acabou vencendo a tendência que administrou o período de expansão do capital, desarticulando os organismos de classe (sindicatos, movimentos sociais, etc.) e integrando-os ao Estado. O resultado disso foi que a trajetória de lutas dos últimos 20 anos em nosso país não conseguiu instabilizar a dominação burguesa, e tão pouco deixou um legado combativo para o enfrentamento dos ataques aos nossos direitos.

Esse fio interrompido na década de 90 ainda não foi reatado. Tal falta de organicidade tem configurado um obstáculo para as classes trabalhadoras se lançarem na disputa política para defender suas próprias causas, libertando-se das relações de cooptação política a reboque dos interesses e das necessidades das forças que dominam a ordem existente. Tem, até mesmo, inviabilizado uma resposta nacionalmente integrada da classe trabalhadora que faça frente aos ataques diretos do grande capital, entre outros, o representado pela “Agenda Brasil”. Este estado de coisas dificulta a resistência, mesmo numa conjuntura em que afloram greves e mobilizações por todo o território nacional.

Faltam lutas contínuas com força suficiente para contagiar e aglutinar os elementos dispersos nacionalmente em eixos comuns de ação. A extrema fragmentação dos movimentos sociais e da própria classe trabalhadora, junto com o total descrédito em que as organizações do ciclo PT se colocaram, nos alerta para o fato de que o golpe já ocorreu ante a intensificação da exploração da força de trabalho. É preciso reagir imediatamente.


Marco legal do “golpe”
  • O maior ajuste fiscal da história do país que, em termos nominais, reorientou o montante de R$ 70 bilhões antes destinados a áreas essenciais para o pagamento de juros da dívida pública.
  • Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665, que dificultam e diminuem a possibilidade de obtenção de seguro desemprego e aposentadoria.
  • Projeto de Lei 4330 (PL), que permite a terceirização da atividade principal da empresa. 
  • Mudança no caráter dos investimentos dos fundos de pensão, liberando aplicação de recursos para especulação financeira.
  • Medida Provisória 680 (MP), o chamado Programa de Proteção ao Emprego (PPE), que permite diminuir a jornada de trabalho e o salário em até 30% e muda o pagamento dos abonos salariais do PIS/PASEP.
  • Proposta do fim da união aduaneira com o Mercosul e abertura comercial com os EUA.
  • Proposta de Emenda à Constituição 171 (PEC) que reduz de 18 para 16 anos a idade penal para crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte.
  • Proposta de Emenda Constitucional 215 (PEC) que confere ao Congresso Nacional a competência exclusiva da aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e revisão das demarcações já homologadas.
  • Projeto de Lei 867 (PL), que impede ao professor falar em política em sala de aula.
  • Projeto de Lei 131 (PL), do senador José Serra (PSDB-SP), que tramita em regime de urgência no senado e visa transferir para multinacionais os lucros com a exploração dos recursos do pré-sal.
  • Projeto de Lei 5807 (PL), que define um novo marco regulatório para o setor de mineração no Brasil abrindo territórios das comunidades tradicionais para a exploração extrativa.
  • Plano “Brasil Pátria Educadora” que destina grande parte dos recursos públicos da educação para instituições privadas.
  • Projeto de Lei 2016 (PL), que caracteriza como terroristas as manifestações políticas equiparando-as ao uso de explosivos nucleares.
  • “Agenda Brasil”
Traduzindo os pontos da “Agenda Brasil”
  • Proteção legal para investimento privado em concessões e privatizações na forma de Parcerias Público Privadas (PPP) através do desmonte das agências que põem limites aos impactos ambientais e sociais, flexibilizando as leis trabalhistas, desregulamentando a atividade extrativa, a proteção ambiental e do patrimônio histórico e retrocedendo na demarcação das terras indígenas, bem como estimulando megaeventos em detrimento do bem público e relativizando os estudos de impactos sociais e ambientais nas obras de infraestrutura. 
  • Busca de equilíbrio fiscal por meio da redução de impostos sobre o patrimônio e aumento de impostos sobre a renda, da desvinculação de receitas orçamentárias em áreas essenciais, privatização de patrimônio público, caracterização do investimento das estatais como gasto público, impossibilidade de ajuste salarial para os servidores públicos.
  • Desmonte da proteção social que acaba com o princípio da gratuidade do Sistema Único de Saúde (SUS) e realoca os investimentos em educação para o pagamento da dívida pública.
  • Isenção de impostos para as empresas, desoneração delas pela redução da folha de pagamento e acesso a fontes de financiamento público.


-------------------------------------------------------------
[1] – No período 2002 a 2010, as construtoras e a indústria de transformação, aliadas ao agronegócio e à mineração, conformaram a chamada “frente neodesenvolvimentista”, e receberam amplo crédito de fundos tirados dos trabalhadores via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Todos os setores perderam força pela queda do preço das commodities e pela retração do comércio internacional. A crise obriga a uma diminuição no poder de compra pelo corte das políticas sociais, o que afeta diretamente a indústria de transformação. Testemunhamos hoje um deslizamento nessa “frente”, com uma aproximação do agronegócio ao capital bancário e financeiro. 


[3] –“ A viagem de Dilma Rousseff aos EUA e os novos alinhamentos do capitalismo” http://coletivocanudos.blogspot.com.br/2015/07/a-viagem-de-dilma-rousseff-e-os-novos.html 

[4] –“ Acabar com a Seppir não reduz gastos e é retrocesso no combate ao racismo” http://www.geledes.org.br/acabar-com-a-seppir-nao-reduz-gastos-e-e-retrocesso-no-combate-ao-racismo/#gs.8a2303f3e3a4454aa7a518acee8316af 

Comente com o Facebook: