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terça-feira, 15 de março de 2016

A questão indígena no Brasil

Foto: retomada Guarani Kaiowá de Teyi Jusu no MS
Quando José Carlos Mariátegui formulou sua tese sobre a questão indígena no Peru disse que "o problema do índio era o problema da terra". Também falava em "socialismo indo-americano". Tinha dois motivos para tal formulação. O primeiro dizia respeito à formação das classes trabalhadoras peruanas. Afinal, a população peruana era, em 1928, quando ele publicou seus "7 ensaios de interpretação da realidade peruana", Mariátegui calculava que era indígena e camponesa num 80%. Mas ele tinha outra razão muito relevante: os "elementos de socialismo prático" presentes na sociabilidade das comunidades indígenas andinas, os ayllus. Para além dos mal entendidos da época (os estudos sobre a história pré-colombiana eram muito incipientes e atribuía-se aos incas tal sociabilidade -hoje sabemos que é bem mais antiga, remanescente da comunidade primeva) , há, nas comunidades indígenas da América, elementos de uma cultura que permaneceu, mesmo que em forma residual, de um modo de produção e reprodução da vida que não só não é capitalista, mas que conserva traços da sociedade não cindida. É verdade que esses elementos sobreviveram se tornando funcionais às formações econômicas hegemônicas: no caso do mundo andino, primeiro foram funcionais aos sucessivos Estados formados nas grandes sociedades agrícolas da região, incluído o Tanwantinsuyo, e, depois, à integração do território americano ao sistema capitalista mundial, nos sucessivos modelos de acumulação. Mas Mariátegui tinha uma prospectiva de socialismo que se apoiava nessas práticas, num contexto de luta anticapitalista que encontrasse nessa sociabilidade bases de inspiração e de criação prática que se desenvolvessem num sentido universal, saindo da condição residual para se tornar hegemônica, sem passar pelo desenvolvimento capitalista como uma etapa "necessária". 

O procedimento teórico não tinha uma originalidade tão radical. Marx tinha estudado o mir (a comuna eslava) para responder a uma pergunta da inquieta revolucionária russa Vera Zasulich. E estimava que o programa agrário para a revolução socialista na Rússia bem podia se basear na tradição comunal eslava, sem passar necessariamente pelo estímulo à pequena propriedade agrária. A originalidade de Mariátegui foi a de generalizar esse procedimento para a Indo-América. 

Mas, quando os socialistas de Brasil falamos em questão indígena, nos encontramos com outra situação. Por um lado, a atual população indígena no Brasil não passa de um milhão de pessoas. Por outro, e isto é bem importante, nos encontramos com grupos humanos que conservaram teimosamente, muito mais do que as comunidades andinas, uma sociabilidade que se recusa à produção de excedente, à diferenciação social e a qualquer forma de Estado. As culturas que aqui prosperaram antes da chegada dos europeus eram culturas da abundância. E que preferiam correr o risco da falta de recursos para o consumo diferido (em caso de adversidades contingentes) a criar bases para a concentração do poder. Não havia ingenuidade, hoje sabemos, nessa escolha. Provavelmente, foi uma disjuntiva em que todas as comunidades primevas se viram obrigadas a optar. No caso dos indígenas do território que hoje chamamos Brasil, em ocasiões houve tentativas de interromper qualquer desenvolvimento de cisões sociais. O grande movimento "messiânico" dos karai, no século XV, entre os guarani, antes mesmo da chegada dos europeus, denuncia esse gesto. Eles desafiaram a ordem que tendia à cisão social por meio da chamada ao jeguatá, a procura da Terra Sem Mal, que incluía a desarticulação da ordem na troca de mulheres. 

Os europeus não encontraram, no território que hoje chamamos Brasil, formas de exploração do trabalho que pudessem reaproveitar para a acumulação capitalista, como aconteceu no mundo andino ou em Meso-América. Os indígenas neste território preferiram, na grande maioria, fugir para o mato a se submeter ao trabalho forçado, ou mesmo à redução em reservas ou missões. Há nos indígenas do território brasileiro elementos  radicais de socialismo prático, que em outras regiões do  continente já tinham perdido hegemonia fazia até um par de milênios. 

É por esse motivo que os socialistas no Brasil precisamos olhar para os indígenas da região com gesto aprendiz. Como era o mundo antes da exploração de uns por outros? Como era o mundo antes da alienação? E como podemos ser os humanos sem sede de poder sobre os outros? Como podemos ser os humanos numa economia de abundância? Como podemos ser sem destruir o mundo? Muita coisa para aprender.

Mas existe uma realidade que ameaça os indígenas que tinham fugido, durante a colonização, para terras que não interessavam ao capital. Hoje não existe nem um milímetro de território que não interesse ao capital, seja para a produção, seja para a especulação. O avanço do capital sobre o território das comunidades, não só indígenas, senão também as caboclas (aquelas que ficaram a meio caminho entre o mundo indígena e o branco -as que se reproduzem fora do mercado) ameaça o povo e ameaça a terra, a água, o mato como habitat. O círculo virtuoso da vida próprio dos territórios das comunidades primevas é interrompido. O avanço da produção de commodities, seja agrícolas, pecuárias ou minerais, com tudo arrasa. 

Frente a isso, quando parece que nada detém avanço do capital, os povos indígenas resistem. E não apenas resistem: eles têm uma estratégia de recuperação do que foi perdido. Sua renitente recusa a qualquer forma de poder de um grupo social sobre outro os bem orienta. As autodemarcações, que aparecem revestidas de uma legitimidade constitucional, uma vez que realizam, na prática, o que diz a letra do artigo 231 e o 232 da constituição de 1988, têm um sentido mais profundo. Porque se opõem radicalmente ao princípio motor, paradigma do capital: a ideologia que toma como doxa a produtividade econômica, ou seja, o desenvolvimento para a acumulação capitalista, levando a produção de excedente ao paroxismo.  

No caso específico dos guarani, aquela etnia mais organizada "internacionalmente", o lema que esgrimem é "terra, justiça e liberdade". Prestemos atenção no significado que eles dão a "liberdade". Eles se referem a um mundo sem cercas, onde a circulação humana, mas também animal e de pólen não tenha impedimentos. É o jeguatá. Aquilo que nós chamaríamos, muito modernamente, de "corredores ecológicos" e "permacultura", sem os quais o jeguatá, a caminhada indígena, que não carrega mantimentos, se torna impossível. Territórios contínuos de abundância, sem os quais a sobrevivência humana também se tornará rapidamente impossível.

Este texto opta por não tratar a questão indígena como uma questão humanitária centrada nos indígenas, e sim por tratá-la como uma questão centrada no desenvolvimento da humanidade, em termos universais, que é a perspectiva de nós, socialistas.

O debate sobre o mundo indígena pode ajudar também a pensar na sociedade não cindida como prospectiva, como narrativa de futuro: sobre a opressão de classe, sobre a opressão colonial e racial e sobre a opressão patriarcal (sobre as mulheres e os filhos), matriz de todas as outras, segundo reflete Abdullah Öcalan. Quando os europeus chegaram a América, encontraram muitos grupos que resistiam ao patriarcado. O próprio nome dado à Amazônia é um registro desse efêmero encontro. 

Não se trata de um retorno ao passado pré-industrial. Trata-se de recuperar princípios dos quais a cisão social nos desviou. Os princípios vivos nos povos indígenas, e não apenas no campo da sociabilidade, mas também da relação com o ambiente, desafiam-nos a repensar a produção industrial. O norte desta, sob a égide do capital, é a acumulação. O sentido dela é anti-humano, anti-ambiental. Como seria uma economia moderna, e por tanto industrial, orientada para a produção e reprodução da vida? Quais os ramos da indústria que interessam a essa finalidade e quais as transformações necessárias para zerar seu impacto social e ambiental negativo? Como princípios de uma "economia de abundância", sem acumulação de excedente, poderiam orientar essas transformações? Será que os princípios da permacultura , com a conseguinte racionalização dos processos de produção e redução da energia utilizada para o transporte poderia se aplicar à produção para além das atividades agrocopecuárias e a manufatura de baixa tecnologia? A tendência que a finalidade de acumulação firmou, de produção concentrada, com alto impacto ambiental, não poderia ser revertida pela aplicação de princípios da permacultura também à indústria? A formação de corredores de floresta que os ambientalistas reconhecem como imprescindíveis para a recuperação ambiental não podem ser pensados também como corredores de abundância? 

Os povos indígenas são prova de que o poder exercido para a alienação de energia humana e sua redução à força de trabalho não é uma tendência própria da natureza humana. Ele surge em determinadas condições históricas e houve povos que resistiram e resistem ao exercício desse poder. O trabalho alienado não é um valor universal. Ele degrada e torna a vida sub-humana. Os povos das terras baixas não compartilham dessa ideologia segundo a qual o trabalho dignifica.

Por isso, para os socialistas do Brasil, da América e para os socialistas em geral, a questão indígena é fundamental. Entre os povos indígenas, o proletariado da cidade e do campo encontra mais que aliados estratégicos: encontra respostas programáticas contra o capital e para aquele "sonho de uma coisa" do qual falava Marx.